quarta-feira, 30 de setembro de 2020

DEUS, A HUMANIDADE E A PANDEMIA

Neste tempo de pandemia, é comum perguntarmos “o que Deus tem a ver com tudo isso?” ou “quem é responsável pela pandemia, Deus ou a humanidade?”. Há pelo menos dois ensinos que propõem respostas a estas perguntas.

 

No primeiro ensino, Deus é o responsável pela pandemia

 

Recentemente foi publicado um livro intitulado “Coronavírus e Cristo”, do John Piper. O autor parte do pressuposto que tudo o que acontece é desígnio de Deus (determinismo). Logo, ele se refere à pandemia como um tempo de providência agridoce: “[...] providência agridoce. É isso que o coronavírus é.”. Li esta citação para a minha esposa, que me perguntou: “doce para quem?”. Também fiquei me perguntando...

Ao que parece, na origem desse ensino problemático e perturbador está uma compreensão equivocada da soberania de Deus. Isso fica evidente nas palavras de Piper: “Dizer que Deus governa sobre tudo significa que ele é soberano. Sua soberania significa que ele pode fazer, e de fato faz, tudo o que ele decididamente decide fazer.”. Até aqui, tudo bem: Deus pode fazer tudo e faz o que decide. O equívoco está em um acréscimo ou um salto do autor: “[...] tudo acontece porque Deus deseja que aconteça.” (o que ele chama de soberania abrangente e universal). Por trás desse equívoco está o determinismo. Se Deus determina tudo o que acontece, Deus é o responsável último pelo mal, pelo sofrimento e pelo pecado, o que é um grande problema.

Presta atenção no que Piper conclui: “Portanto, o coronavírus foi enviado por Deus. Esta não é uma época para visões sentimentalistas de Deus. É uma época agridoce. E Deus a ordenou. Deus governa sobre ela. Ele a trará ao fim. Nenhuma parte está fora do seu domínio. Vida e morte estão em suas mãos.”. O autor afirma também: “Nenhum vírus se move a não ser pelo plano de Deus. Esta é uma soberania meticulosa.”. Essa soberania é tão meticulosa que Piper ainda diz: “Algumas pessoas serão infectadas com o coronavírus como um julgamento específico de Deus por causa de suas atitudes e ações pecaminosas.”. Por fim, ele declara: “Esta é a mensagem do coronavírus: Pare de confiar em si mesmos e voltem-se para Deus.”.

 

No segundo ensino, a humanidade é responsável pela pandemia.

 

A superação do ensino de que Deus é responsável pela pandemia requer a superação do determinismo. Para superar o determinismo, é necessário considerar um outro atributo de Deus: a onisciência. Aprendi com o meu amigo Ariovaldo Ramos que “a onisciência é o atributo que Deus tem de saber tudo sobre todos e sobre todas as coisas, o tempo todo e a qualquer tempo, sem precisar determinar nada”. Assim, embora haja determinações de Deus, não há determinismo.

Recentemente também foi publicado outro livro intitulado “Deus e a pandemia”, do N. T. Wright. O autor se refere à pandemia como um tempo de lágrimas, portas trancadas e dúvida (certamente, um tempo mais agri do que doce). Mas é exatamente nesse tempo que podemos experimentar Jesus vindo ao nosso encontro.

Para lidar com esse tempo difícil, precisamos re-significar a nossa compreensão de soberania. Também aprendi com o Ari que “a soberania é o atributo de Deus que lhe permite interferir em qualquer tempo e em qualquer situação tendo em vista o seu propósito, a saber, a redenção”. Assim sendo, Deus pode agir quando quiser, onde quiser e como quiser. Ele é soberano. Todavia, ele não age sempre e não é o causador de todas as coisas. Ou seja, há ações humanas que não tem sua causa em Deus. Um exemplo disso é Jeremias 7:31: “Construíram o alto de Tofete no vale de Ben-Hinom, para queimarem em sacrifício os seus filhos e as suas filhas, coisa que nunca ordenei e que jamais me veio à mente.” (repetido em Jr. 32:35).

Então, nós não podemos afirmar, categoricamente, que foi Deus que enviou o coronavírus. Penso ser mais plausível considerar que este foi uma reação do planeta à ação humana abusiva. Uma reação microcósmica: um vírus de origem animal (que, ao que tudo indica, surgiu num mercado, na cidade de Wuhan, na China); um vírus complexo, mutante e de alto contágio. Consequentemente, se assim o for, nós somos os responsáveis pela pandemia do coronavírus.

Já em relação aos deterministas que ensinam que Deus é o responsável, Wright comenta: “‘se esse é o ‘deus’ de vocês’, pensariam muitos dos nossos contemporâneos, e com razão, ‘não queremos nada com ele’. É muito mais apropriado, então, reconhecer que Deus realmente delegou a administração de muitos aspectos do seu mundo aos seres humanos, e que, ao fazê-lo, assumiu o risco de que a humanidade alarme e aflija o seu coração. Só que ele não deixou de responsabilizar os culpados.”. Portanto, a soberania de Deus é sábia, não meticulosa, pois ele concede liberdade real a seres humanos reais e responsáveis.

Aprofundando um pouco mais essa noção de soberania, Wright destaca a pessoa de Jesus. Na sua vida, morte e ressurreição, Jesus expressa a soberania de Deus, sinalizando o seu Reino. Logo, tanto o que Jesus fez quanto o que a sua igreja é chamada a fazer sinalizam o governo ou o reinado de Deus sobre este mundo caótico. Esse governo ou reinando já está presente, mas ainda não em sua plenitude. Assim, o autor diz: “A pessoa de Jesus é a razão pela qual a humanidade deve abandonar a idolatria, a injustiça e toda iniquidade. A cruz é o lugar onde todos os sofrimentos e horrores do mundo foram amontoados e tratados. A ressurreição é o lançamento da nova criação, seu governo salvador sobre a terra – a começar do corpo físico do próprio Jesus.”. Ele continua: “A aplicação é óbvia. Jesus está dizendo: ‘Não haverá mais sinal de advertência após a morte do filho’.”. Assim sendo, é a mensagem do Evangelho que chama as pessoas a Deus, não a do coronavírus.

Já no fim do seu livro, Wright declara: “Parte da resposta à pergunta: ‘onde Deus está na pandemia?’ deve ser: ‘Lá, na linha de frente, sofrendo e morrendo para trazer cura e esperança’.”. Não é exatamente assim que Deus se revela em Cristo? Não é exatamente isso que somos chamados a fazer também? Por fim, o autor afirma: “Deus sempre quis governar seu mundo por meio do ser humano. Faz parte do que significa ser feito à imagem de Deus. Tal propósito foi gloriosamente cumprido no ser humano Jesus; e a forma como a criação finalmente se transformará naquilo que sempre deveria ter sido acontecerá por meio do governo sábio, salvador e restaurador de seres humanos renovados e ressuscitados.”. Ele continua: “Mas o que isso significa na prática, afinal? Significa que, quando o mundo passa por grandes convulsões, seguidores de Jesus são chamados a ser pessoas de oração no lugar em que o mundo está sofrendo.”.

Concluo afirmando que Deus é soberano, sem determinismo e que nós somos livres, com responsabilidade. Neste tempo de pandemia, somos chamados a chorar, a orar e a sinalizar o Reino de Deus. Fazemos isso na esperança de que essa pandemia vai passar.

 

Que Deus nos livre, em breve, dessa provação! Que livre toda a humanidade!

 

Luiz Felipe Xavier.

 

Anteontem (28/09), ultrapassamos a marca de 1 milhão de mortos por Covid-19 no mundo. Destes, mais de 142 mil no Brasil. Lamento por aqueles que perderam a sua vida e oro por aqueles que se encontram enlutados.