terça-feira, 14 de março de 2017

Religiosidade morta ou espiritualidade viva?

Jesus foi alguém muito questionado pelos líderes religiosos do seu tempo. Ao longo do Evangelho de Marcos, isso acontece várias vezes. Jesus perdoa pecados e o questionamento é: ele tem poder para isso? Jesus come com publicanos e pecadores, e o questionamento é: ele toma as refeições com qualquer um? Jesus desencoraja temporariamente o jejum e o questionamento é: os seus discípulos não jejuam? Jesus aparentemente quebra o sábado e o questionamento é: os seus discípulos e ele fazem o que é proibido no sétimo dia? Jesus expulsa demônios e o questionamento é: ele está possuído por Belzebu? Em Marcos 7:1-23, os discípulos de Jesus comem sem lavar as mãos e o questionamento é: eles são impuros por isso? Tomando como base este texto, podemos afirmar que os discípulos de Jesus são aqueles que rompem com uma religiosidade morta e assumem uma espiritualidade viva. Eles são aqueles que passam por três profundas transformações.
Na primeira transformação, os discípulos passam da tradição religiosa ao exemplo de Cristo. Marcos começa a sua narrativa descrevendo um flagrante: os fariseus e os mestres da lei aproximam-se de Jesus e observam que seus discípulos comem sem lavar as mãos. Os mestres da lei ou escribas são aqueles que interpretam e aplicam a lei escrita de Moisés. Eles têm como referência a tradição oral dos líderes religiosos ou anciãos de Israel. Os fariseus, por sua vez, são aqueles que vivem de acordo com o ensino desses mestres da lei. Diz o texto que os fariseus e os mestres da lei flagram os discípulos de Jesus comendo sem lavar as mãos. Como Marcos está escrevendo a leitores gentios, ele explica-lhes a tradição oral dos líderes religiosos de Israel: antes de comer, é necessário lavar as mãos cerimonialmente. Além disso, é necessário se lavar ao chegar da rua, e lavar copos, jarros e vasilhas de metal. Logo, esses rituais de purificação refletem a convicção de que a fonte do mal é externa, ou seja, as impurezas vêm do contato com pessoas ou coisas impuras.
Tendo explicado a tradição oral dos líderes religiosos de Israel, Marcos apresenta a pergunta dos fariseus e dos mestres da lei a Jesus: “Por que os seus discípulos não vivem de acordo com a tradição dos líderes religiosos, em vez de comerem o alimento com as mãos ‘impuras’?”. Antes de considerarmos a resposta a essa pergunta, observemos que a espiritualidade viva baseia-se no exemplo de Cristo, não na tradição religiosa. Assim, faremos muito bem a nós mesmos e às nossas comunidades se relermos os Evangelhos observando como Cristo viveu a sua vida. Ao que parece, muitos de nós leem estas narrativas procurando saber somente como Cristo garantiu-nos a salvação e poucos de nós as leem procurando saber realmente como Cristo viveu a sua vida. Faremos bem se ampliarmos nossa leitura.
Na segunda transformação, os discípulos passam das regras dos homens aos mandamentos de Deus. Aqui, Jesus responde a pergunta dos fariseus e dos mestres da lei. Ele afirma: “Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens’. Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições de homens”. Que resposta dura! Primeiro, Jesus chama os fariseus e os mestres de lei de hipócritas. Um hipócrita é um ator, alguém que desempenha um papel. Ele não é, de fato, quem aparenta ser. Depois, Jesus responde aos fariseus e aos mestres da lei com as Escrituras. Citando Isaías 29:13, ele faz uma dupla denúncia. A adoração dos fariseus e dos mestres da lei é vã. Eles honram a Deus com os lábios, mas seu coração está longe dele. E os ensinos dos fariseus e dos mestres da lei são apenas regras ensinadas por homens. Eles negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições humanas.
Tendo respondido a pergunta dos fariseus e dos mestres da lei, Jesus dá um exemplo. Nesse exemplo, os mandamentos de Deus são: “Honra teu pai e tua mãe” – uma ordem; e “Quem amaldiçoar seu pai e sua mãe será executado” – uma sanção. Como os fariseus e os mestres da lei negligenciam esses mandamentos de Deus e se apegam às tradições humanas? Praticando o Corbã. Aqui, Corbã é dedicar ao Senhor uma oferta que deveria ser utilizada para suprir as necessidades dos pais e, tendo feito isso, usar o valor dessa oferta consigo mesmo, sem sofrer a devida sanção por tal atitude perversa. Assim sendo, os fariseus e os mestres da lei negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições humanas. Em contrapartida, a espiritualidade viva orienta-se pelos mandamentos de Deus. Jesus mesmo resumiu todos os mandamentos em apenas dois: ame a Deus e ame ao próximo. O nosso amor a Deus é expresso em obediência a ele e o nosso amor ao próximo é expresso em serviço a ele. Amemos!
Na terceira transformação, os discípulos de Jesus passam da limpeza exterior à purificação interior. Dirigindo-se a multidão, Jesus diz: “Ouçam-me todos e entendam isso: Não há nada fora do homem que, nele entrando, possa torná-lo ‘impuro’. Ao contrário, o que sai do homem é que o trona ‘impuro’. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça!”. Na rua, ele conta esta parábola à multidão; em casa, ele a explica aos discípulos. Dessa explicação fica evidente que nada que entre no homem pode torná-lo ‘impuro’. Isso porque o que entra vai para o estômago, não para o coração, sendo depois eliminado. O que sai do homem é que o torna ‘impuro’, pois do interior do homem procede toda sorte de males.
Por fim, Jesus destaca alguns desses males do coração. Entre eles estão maus pensamentos ou imaginações más; imoralidades sexuais ou relações sexuais ilícitas; roubos ou subtrações de algo alheio; homicídios ou assassinatos; adultérios ou relacionamentos extraconjugais; cobiças ou desejos ávidos de ter cada vez mais; maldades ou planos perversos que visam prejudicar alguém; engano ou fraude em benefício próprio; devassidão ou libertinagem; inveja ou vontade de ser ou ter o que o outro é ou tem; calúnia ou difamação; arrogância ou orgulho; e insensatez ou tolice. Jesus afirma que todos esses males vêm de dentro e tornam o homem ‘impuro’. Portanto, somente a espiritualidade viva possibilita a nossa purificação interior. Essa purificação tem duas dimensões: uma preventiva e outra terapêutica. Preventivamente, nos purificamos pelo constante exercício de guardar o nosso coração. Guardamos o nosso coração quando guardamos as suas portas: nossos olhos e nossos ouvidos. Terapeuticamente, nos purificamos pelo constante exercício de nos lavar no sangue de Jesus. Quando pecamos, é para a cruz que corremos. Ali há toda a provisão de purificação de que necessitamos.
Que Deus nos ajude a desenvolver uma espiritualidade viva, uma espiritualidade que baseia-se no exemplo de Cristo, que orienta-se pelos mandamentos de Deus e que possibilita a uma real purificação interior!
Luiz Felipe Xavier.