terça-feira, 17 de outubro de 2017

Somente Cristo

Estamos comemorando os 500 anos da Reforma Protestante. Comemorar é trazer à memória, é recordar algo junto com alguém. Queremos comemorar especialmente os chamados 5 Solas: somente a Escritura, somente Cristo, somente a graça, somente a fé e somente a Deus glória. Isso porque nesses 5 Solas encontram-se as verdades centrais do Evangelho. Somente a Escritura, devidamente interpretada, é absoluta em questões relacionadas à nossa fé e à nossa prática. Ela nos apresenta Cristo e somente Cristo é o nosso Salvador e Senhor. A salvação que ele nos oferece é somente pela graça. Ela é um presente que recebemos somente pela fé. Logo, somente Deus é digno de toda a glória. Essas verdades centrais do Evangelho nos conferem identidade e nos convocam à unidade.

O vídeo abaixo é uma seleção que fiz de cenas do filme “Lutero”. Essa seleção ilustra o contexto histórico, principalmente religioso, no qual nasce a Reforma Protestante. Ao assistir esse vídeo, tente imaginar o poder dos 5 Solas na vida daquela gente simples da Europa no século XVI...





Aqui, de modo especial, interessa-nos um dos 5 Solas: o somente Cristo. Como visto no vídeo, na Idade Média, a igreja romana forja em seus membros a compreensão de que a salvação é alcançada por suas boas obras. Dentre elas estão as confissões aos sacerdotes, as práticas das penitências, as intercessões dos santos, as coleções das relíquias, as compras das indulgências, as celebrações das missas, etc.. Diante disso, os reformadores propõem que a salvação baseia-se única e exclusivamente na obra de Cristo realizada na cruz, e que a salvação é produto da justiça de Cristo imputada graciosamente por Deus aos seres humanos pecadores. Assim, somente Cristo é o mediador entre Deus e os homens (cf. 1 Tm. 2:5).

Talvez um dos melhores exemplos do “somente Cristo” no pensamento de Martinho Lutero esteja no conhecido Debate de Heidelberg. Esse debate acontece em 26 de abril de 1518, na reunião trienal do capítulo geral dos agostinianos alemães. Para ele, Lutero prepara 28 teses teológicas. Da tese 1 à tese 18, fica evidente que o ser humano não pode confiar na obediência à lei e na prática das boas obras para se salvar. Da tese 19 à tese 22, fica evidente que a teologia da glória é oposta à teologia da cruz. E da tese 23 à tese 28, fica evidente que a salvação para o ser humano está somente em Cristo. Observemos algumas dessas teses, seguidas dos comentários do próprio Lutero sobre elas.

16) O ser humano que crê querer chegar à graça fazendo o que está em si acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna duplamente réu.
“A lei humilha, a graça exalta. A lei opera o temor e a ira; a graça opera a esperança e a misericórdia. Pois pela lei é adquirido o conhecimento do pecado; pelo conhecimento do pecado, porém, a humildade; e pela humildade, a graça. Desta forma, a obra estranha de Deus realiza, por fim, a sua própria, fazendo um pecador para torná-lo justo.”
17) Entretanto, falar assim não significa dar motivo para o desespero, mas para humilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de procurar a graça de Cristo.
“Pois o desejo da graça só surge quando nasceu o conhecimento do pecado. (...) De igual modo, dizer que nada somos e que sempre pecamos quando fazemos o que está em nós não é tornar as pessoas desesperadas (a não ser que sejam tolas), e sim torná-las ansiosas pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo.”
18) Certo é que o ser humano deve desesperar totalmente de si mesmo, a fim de tornar-se apto para conseguir a graça de Cristo.

19) Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estão feitas;
20) mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz.
“Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na humildade e ignomínia da cruz. (...) Portanto, no Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus.

23) A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tudo o que não está em Cristo.
24) Não obstante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há de melhor.
25) Justo não é quem pratica muitas obras, mas quem, sem obra, muito crê em Cristo.
“(...) a justiça de Deus não é adquirida através de atos freqüentemente repetidos (...) Pois o justo vive a partir da fé (Rm. 1.17). Daí quero que a expressão “sem obras” seja entendida não no sentido de que o justo nada opere, mas no sentido de que as suas obras não fazem a sua justiça; antes, é a sua justiça que faz as obras.”
26) A lei diz: “Faz isto”, mas nunca é feito; a graça diz: “Crê neste”, e já está tudo feito.
“(...) é a fé que justifica, sendo que a lei, diz o B. Agostinho, preceitua o que a fé efetua. Assim, pois, pela fé Cristo está em nós, sim, é uno conosco. Mas Cristo é justo e cumpre todos os mandamentos de Deus, razão pela qual também nós cumprimos todos eles através de Cristo, uma vez que ele se tornou nosso pela fé.”
27) Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de Cristo é a que opera e que a nossa é a operada, e, por conseguinte, que a obra operada agrada a Deus pela graça da obra operante.
“Pois na medida em que Cristo habita em nós pela fé, ele nos move às obras por aquela fé viva em suas obras. As obras que ele mesmo faz são cumprimento dos mandamentos de Deus, a nós concedida pela fé.”
28) O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe agrada; o amor do ser humano surge a partir do objeto que lhe agrada.
“A primeira parte é evidente, porque o amor de Deus, vivendo no ser humano, ama pecadores, maus, tolos, fracos, para torná-los justos, bons, sábios e fortes; assim, antes, derrama e proporciona o bem. Pois os pecadores são belos por serem amados, e não são amados por serem belos.”

Por fim, tomando o “somente Cristo” como referência, podemos pensar em pelo menos três aplicações. A primeira é que Jesus é o nosso único Salvador e Senhor. Isso implica na exclusividade da salvação em Cristo, em uma sociedade cada vez mais pluralista, e na exclusividade do senhorio de Cristo, em uma sociedade cada vez mais autônoma. A segunda aplicação é que a cruz de Cristo é o ponto de partida para a nossa espiritualidade. Ela nos convida não apenas ao exercício da contemplação como também ao exercício da meditação. A terceira aplicação é que o solus Christus (somente Cristo) está relacionado ao corpus Christi (corpo de Cristo). Uma vez que a Igreja é o corpo do qual Cristo é o cabeça, Cristo e a Igreja não podem ser separados. Ou seja, quem tem comunhão com Cristo, que é o cabeça, tem também comunhão com a Igreja, que é o seu corpo. Esta última aplicação reveste-se de importância ainda maior no contexto onde alguns dizem: “Cristo sim, Igreja não!”.

Comemoremos a Reforma Protestante! Reafirmemos o somente Cristo!

Luiz Felipe Xavier.