Estamos comemorando os 500 anos da Reforma
Protestante. Comemorar é trazer à memória, é recordar algo junto com alguém.
Queremos comemorar especialmente os chamados 5 Solas: somente a Escritura, somente Cristo, somente a graça, somente
a fé e somente a Deus glória. Isso porque nesses 5 Solas encontram-se as verdades centrais do Evangelho. Somente a
Escritura, devidamente interpretada, é absoluta em questões relacionadas à nossa
fé e à nossa prática. Ela nos apresenta Cristo e somente Cristo é o nosso
Salvador e Senhor. A salvação que ele nos oferece é somente pela graça. Ela é
um presente que recebemos somente pela fé. Logo, somente Deus é digno de toda a
glória. Essas verdades centrais do Evangelho nos conferem identidade e nos
convocam à unidade.
O vídeo abaixo é uma seleção que fiz de cenas do filme “Lutero”. Essa
seleção ilustra o contexto histórico, principalmente religioso, no qual nasce a
Reforma Protestante. Ao assistir esse vídeo, tente imaginar o poder dos 5 Solas na vida daquela gente simples da
Europa no século XVI...
Aqui, de modo especial, interessa-nos um dos 5 Solas: o “somente Cristo”. Como visto no
vídeo, na Idade Média, a igreja romana forja em seus membros a compreensão de
que a salvação é alcançada por suas boas obras. Dentre elas estão as confissões
aos sacerdotes, as práticas das penitências, as intercessões dos santos, as coleções
das relíquias, as compras das indulgências, as celebrações das missas, etc.. Diante
disso, os reformadores propõem que a salvação baseia-se única e exclusivamente na
obra de Cristo realizada na cruz, e que a salvação é produto da justiça de Cristo imputada graciosamente por Deus
aos seres humanos pecadores.
Assim, somente Cristo é o mediador entre Deus e os homens (cf. 1 Tm. 2:5).
Talvez um dos melhores exemplos do “somente Cristo”
no pensamento de Martinho Lutero esteja no conhecido Debate de Heidelberg. Esse
debate acontece em 26 de abril de 1518, na reunião trienal do capítulo geral
dos agostinianos alemães. Para ele, Lutero prepara 28 teses teológicas. Da tese
1 à tese 18, fica evidente que o ser humano não pode confiar na obediência à
lei e na prática das boas obras para se salvar. Da tese 19 à tese 22, fica
evidente que a teologia da glória é oposta à teologia da cruz. E da tese 23 à tese
28, fica evidente que a salvação para o ser humano está somente em Cristo.
Observemos algumas dessas teses, seguidas dos comentários do próprio Lutero
sobre elas.
16) O ser humano que crê querer chegar à graça
fazendo o que está em si acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna
duplamente réu.
“A lei humilha, a graça
exalta. A lei opera o temor e a ira; a graça opera a esperança e a misericórdia.
Pois pela lei é adquirido o conhecimento do pecado; pelo conhecimento do
pecado, porém, a humildade; e pela humildade, a graça. Desta forma, a obra
estranha de Deus realiza, por fim, a sua própria, fazendo um pecador para torná-lo
justo.”
17) Entretanto, falar assim não significa dar motivo
para o desespero, mas para humilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de
procurar a graça de Cristo.
“Pois o desejo da graça só
surge quando nasceu o conhecimento do pecado. (...) De igual modo, dizer que
nada somos e que sempre pecamos quando fazemos o que está em nós não é tornar
as pessoas desesperadas (a não ser que sejam tolas), e sim torná-las ansiosas
pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo.”
18) Certo é que o ser humano deve desesperar
totalmente de si mesmo, a fim de tornar-se apto para conseguir a graça de
Cristo.
19) Não se pode designar condignamente de teólogo
quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio
daquelas que estão feitas;
20) mas sim quem compreende as coisas visíveis e
posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz.
“Assim, não basta nem adianta
a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na
humildade e ignomínia da cruz. (...) Portanto, no Cristo crucificado é que estão
a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus.
23) A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa,
julga e condena tudo o que não está em Cristo.
24) Não obstante, aquela sabedoria não é má, nem se
deve fugir da lei; sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso
daquilo que há de melhor.
25) Justo não é quem pratica muitas obras, mas quem,
sem obra, muito crê em Cristo.
“(...) a justiça de Deus não é
adquirida através de atos freqüentemente repetidos (...) Pois o justo vive a
partir da fé (Rm. 1.17). Daí quero que a expressão “sem obras” seja entendida
não no sentido de que o justo nada opere, mas no sentido de que as suas obras
não fazem a sua justiça; antes, é a sua justiça que faz as obras.”
26) A lei diz: “Faz isto”, mas nunca é feito; a graça
diz: “Crê neste”, e já está tudo feito.
“(...) é a fé que justifica,
sendo que a lei, diz o B. Agostinho, preceitua o que a fé efetua. Assim, pois,
pela fé Cristo está em nós, sim, é uno conosco. Mas Cristo é justo e cumpre
todos os mandamentos de Deus, razão pela qual também nós cumprimos todos eles
através de Cristo, uma vez que ele se tornou nosso pela fé.”
27) Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de
Cristo é a que opera e que a nossa é a operada, e, por conseguinte, que a obra
operada agrada a Deus pela graça da obra operante.
“Pois na medida em que Cristo
habita em nós pela fé, ele nos move às obras por aquela fé viva em suas obras.
As obras que ele mesmo faz são cumprimento dos mandamentos de Deus, a nós
concedida pela fé.”
28) O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe
agrada; o amor do ser humano surge a partir do objeto que lhe agrada.
“A primeira parte é evidente,
porque o amor de Deus, vivendo no ser humano, ama pecadores, maus, tolos,
fracos, para torná-los justos, bons, sábios e fortes; assim, antes, derrama e
proporciona o bem. Pois os pecadores são belos por serem amados, e não são
amados por serem belos.”
Por fim, tomando o “somente Cristo” como referência,
podemos pensar em pelo menos três aplicações. A primeira é que Jesus é o nosso único Salvador e Senhor. Isso
implica na exclusividade da salvação em Cristo, em uma sociedade cada vez mais
pluralista, e na exclusividade do senhorio de Cristo, em uma sociedade cada vez
mais autônoma. A segunda aplicação é que a
cruz de Cristo é o ponto de partida para a nossa espiritualidade. Ela nos
convida não apenas ao exercício da contemplação como também ao exercício da
meditação. A terceira aplicação é que o solus Christus (somente Cristo) está
relacionado ao corpus Christi (corpo
de Cristo). Uma vez que a Igreja é o corpo do qual Cristo é o
cabeça, Cristo e a Igreja não podem ser separados. Ou seja, quem tem comunhão
com Cristo, que é o cabeça, tem também comunhão com a Igreja, que é o seu
corpo. Esta última aplicação reveste-se de importância ainda maior no contexto onde
alguns dizem: “Cristo sim, Igreja não!”.
Comemoremos a Reforma Protestante! Reafirmemos o
somente Cristo!
Luiz Felipe Xavier.